As novas normas contábeis e a MP n° 449
A novela brasileira da adoção de regras mundiais de contabilidade já dura nove anos e está longe de terminar.
A novela brasileira da adoção de regras mundiais de  contabilidade já dura nove anos e está longe de terminar. Em novembro de 2000, a  Comissão de Valores Mobiliários (CVM) encaminhou à Câmara dos Deputados uma  proposta de adequação das regras contábeis brasileiras aos padrões  internacionais. O projeto, voltado às modificações da Lei n° 6.404, de 1976, foi  protocolado sob o número 3.741. Após sete anos de ajustes e emendas, o que era  um projeto foi transformado em lei e, em 28 de dezembro de 2007 o Diário Oficial  da União publicou a Lei n° 11.638.
Por mais pertinentes que possam ser as  críticas aos padrões internacionais de contabilidade, as novas disposições  possuíam o mérito de alinhar as demonstrações contábeis das empresas brasileiras  às exigências de um mundo globalizado. Além disso, outra qualidade do novo texto  encontrava-se no estabelecimento de uma neutralidade das normas jurídicas de  natureza contábil relativamente às normas de natureza tributária. A nova redação  dada aos parágrafos 2° e 7° do artigo 177 da Lei n° 6.404 assegurava que, em  princípio, aquelas mudanças não produziriam efeitos tributários. Com isso, o  novo diploma legal resgatava o papel das ciências contábeis, ao mesmo tempo em  que mantinha os fundamentos do direito tributário. Dessa forma, os registros  contábeis passariam a retratar a essência econômica dos negócios jurídicos, ao  mesmo tempo em que os ajustes em livros acessórios retratariam, para fins  tributários, a natureza jurídica desses negócios.
No entanto, isso tudo  caiu por terra com a edição da Medida Provisória n° 449, em 3 de dezembro de  2008. Inconformada, a Receita Federal do Brasil arquitetou a modificação do  parágrafo 2° e a revogação do parágrafo 7° do artigo 177. Ao proceder dessa  forma, o fisco acabou com a neutralidade atribuída à Lei n° 6.404 com a redação  que lhe foi dada com a Lei n° 11.638. Em seu lugar, foi instituído um regime  tributário de transição que apregoa uma neutralidade transitória e aparente da  carga tributária e não mais das normas contábeis. Ironicamente, a medida  resguardou ao contribuinte o direito de optar pela nova modalidade, a qual lhe  garante que a carga tributária devida por sua empresa não será maior do que já  é. A outra alternativa, que está sendo apresentada às empresas, é a de adotar os  novos métodos e critérios contábeis instituídos pela Lei n° 11.638, os quais,  tudo indica, ocasionarão aumento da carga tributária. Frise-se que essa  situação, na verdade, não passa de uma suposição, pois o contribuinte não terá  tempo hábil para analisar adequadamente sua situação frente a cada uma das  alternativas. Logo, não haverá opção consciente.
E o pior, até agora o  debate em torno da adoção dos padrões internacionais de contabilidade vinha  sendo feito no âmbito das grandes corporações. A neutralidade das normas  contábeis eximia as demais empresas das implicações resultantes do novo modelo.  Por esse motivo, um grande número de empresas estava alheia a essas  modificações. Entretanto, a revogação do parágrafo 7° e a nova redação dada ao  parágrafo 2° restabeleceu os efeitos tributários das normas contábeis. Por força  do inciso XI do artigo 67 do Decreto-lei n° 1.598, de 1977, o lucro líquido do  exercício deve ser apurado de acordo com o previsto pela Lei m° 6.404, agora com  a redação dada pela Lei n° 11.638. Isso significa que todas as empresas optantes  pelo lucro real - qualquer que seja seu porte ou seu revestimento societário -  estão sujeitas a um aumento em sua carga tributária. Em certas situações, face  às omissões do Código Civil, isso também acontecerá com as empresas optantes  pelo lucro presumido. O que é grave é que a maioria dessas empresas sequer sabe  disso. Não estão atentas para o fato de que a Medida Provisória n° 449  obrigou-as a "optar" pelo regime tributário de transição, do contrário terão que  arcar com mais tributos.
A rigor, o regime tributário de transição se  assemelha a uma tentativa cômoda do fisco de postergar sua adaptação ao novo  modelo para 2010, ou para as calendas gregas. Tentativa atabalhoada porque fez  isso suprimindo os dispositivos que corporificavam o espírito da Lei n° 11.638  de neutralidade das normas contábeis - transferindo o caos para o meio  empresarial.
E é aqui que se constata que, também no âmbito da produção  das leis, é possível desmanchar com os pés aquilo que foi construído com as mãos  ao longo de sete anos. É certo que, se não suprimidas pelo Congresso Nacional,  as modificações da Medida Provisória n° 449 importarão em um aumento da carga  tributária das empresas. Se isso ocorrer, os dispositivos da norma responsáveis  por essa elevação serão considerados inconstitucionais, já que essa medida  provisória não foi convertida em lei antes de 31 de dezembro de 2008, ferindo,  assim, o parágrafo 2° do artigo 62 da Constituição Federal de 1988, que  determina que uma medida provisória que implique instituição ou majoração de  impostos, exceto os previstos nos incisos I, II, IV e V do artigo 153 e no  inciso II do artigo 154, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte  se tiver sido convertida em lei até o último dia do ano em que foi editada.
